Quando a Direção Graciosa Futebol
Clube me convidou para proferir algumas palavras a propósito da passagem dos 75
anos do clube não pude recusar.
Como é tradicional nestes dias de
festa, podia optar por mencionar a história do Graciosa, referir os feitos
desportivos e sociais, enfim, lembrar o que de bom se passou neste clube.
Preferi ir por outro caminho, revelar
o que a minha geração vivenciou nesta casa ao longo dos últimos anos.
A missa das 11, o almoço em família e
a ida ao jogo a meio da tarde faziam parte dos hábitos das famílias aos
Domingos.
Crianças, jovens e adultos,
engalanados pelos fatos domingueiros, juntavam-se nas imediações do Graciosa e,
em cortejo, dirigiam-se para o Campo Grande, do Graciosa, pela canada do moinho
do Chico Bala.
Esse percurso era marcado pela ruido do
calcorrear das botas de futebol de travessas e os jogadores eram brindados com
palavras de incentivo.
Já no campo, por entre brincadeiras
próprias da idade, trocas de olhar com as moças, uma malagueta doce ou um saco
de pipocas, lá íamos observando o jogo onde nos habituámos a ver classe do
Manuel Maria, a imponência do Gaspar, a destreza do Valter, o passo miudinho do
Serra, o calculismo do Ilberto, a ratice do Reizinho e os voos acrobáticos do António
Pires. Nessa altura já despertara para o Futebol um grande senhor desta arte: o
Fernando Mesquita que foi um jogador notável e que atravessou várias gerações.
Eram estes, e os outros, os heróis da
nossa infância. Aprendemos, desde cedo, a admirar os golos e outros feitos
destes homens que de uma forma abnegada vestiam o equipamento amarelo e branco
(às vezes amarelo e vermelho) e davam tudo pelo seu clube.
Mais tarde, já grandotes - mas não o
suficiente para poder ombrear com a geração que veio a seguir - eu, o Rui
Jorge, o Jorginho e o Adriano, entre outros - iniciamos a nossa carreira de
futebolistas, digamos assim, indo, dias a fio, para os treinos e, quando
restava uma das únicas duas bolas de couro, duras como uma rocha, lá tínhamos a
oportunidade de treinar, ou melhor, de brincar.
Lembro-me de me equipar, pela
primeira vez, de camisa amarela e calção verde. Foi uma alegria que ficou
registada em fotografia que ainda guardo comigo.
Naquele tempo não havia escalões de
formação. Quando o corpo despontava lá se integrava o jovem na equipa. Era uma
passagem repentina de criança para jovem/adulto. Esta realidade não nos
amolecia. Antes pelo contrário, dava-nos estaleca, como se diz na gíria.
Mais tarde surgiu uma geração de ouro
no Graciosa Futebol Clube: o Serafim, jogador muto tecnicista; o Gasparinho, defesa
seguro e um bom organizador de jogo; o Marcelo, guarda-redes que dava
espetáculo com as suas defesas; o João Carlos, com excelente técnica, uma
capacidade física acima da média e competência na leitura de jogo; o Elvino,
defesa implacável; o António, avançado rápido e com um forte pé esquerdo,
juntamente com o Mesquita, um colocador de bolas como não se vê por aí,
formavam uma equipa de sonho.
Qualquer um destes atletas poderia ter
ido longe em clubes de maior prestígio, não fora esta fronteira marítima que
nos rodeia a quartar essa possibilidade. O João Carlos ainda fez um excelente
percurso no Santa Clara, onde ainda hoje é recordado.
É nesta altura que surgem os
terceirenses José do Reis, Carlinhos e João Gabriel. Ajudavam o clube no
período de verão mas, sobretudo, transmitiam aos locais outros hábitos, nomeadamente
de treino.
Acompanharam a equipa aos Estados Unidos e Canadá em 1976, levando
um enorme valor acrescentado na apresentação do nosso clube perante os adeptos
naqueles países de acolhimento.
Entretanto já jogam o Luís Sousa
(Extremo), o José Leite, o João Sousa (Canzil), o José Carlos (Canário). De
seguida sou eu a entrar (Zé Boeta), o Rui Jorge, o José Luís Veiga (Burreca), o
Henrique, o Hélio Picanço, etc..
Mais tarde surgem o Carlos Alberto, o
Fernando Rui Santos, o João Picanço (cabaço), o Rui Picanço (carcereiro), o
Moisés, o João Luís (Rufino), o Hélio Gil, o Artur, entre outros.
Nesse tempo os treinos eram poucos,
mas a vontade de treinar era muita. Lembro-me, como se fosse hoje, um grupinho
de jogadores insistia em treinar, tipo auto treino, umas vezes no campo de
futebol outras vezes em corridas até ao farol da Ponta da Barca, numa estrada
ainda em terra batida.
Fizesse sol ou chuva, lá estávamos nós
para cumprir com aquilo que julgávamos ser a nossa obrigação enquanto atletas.
É nessa época que se iniciam as
provas associativas e as viagens. Eram grandes aventuras que traziam sempre
histórias que davam para tema de conversa durante meses. Ainda hoje oiço algumas
que, apesar de repetidas, tem sempre piada e fazem aparecer outras que eram
menos conhecidas.
Se há coisas de que arrependo é a de
ter sido expulso num jogo por mau comportamento em que o Professor Manuel era o
árbitro.
Tenho também remorsos por ter marcado
2 autogolos ao Carlos Alberto, num jogo com o Marítimo em que perdemos por 4-2.
O Carlos ficou 2 semanas sem me falar nos treinos por tamanha desfaçatez.
Um foi um tiro, ele não tinha
hipóteses, mas o segundo foi um frango, dizia-lhe eu na altura.
E ainda tenho arrepios ao pensar que
participei num assalto à lata da linguiça do João Sousa na Praia da Vitória e fico
com calafrios quando me lembro da Ana a procurar as ditas linguiças e a
encontrar apenas pedras entre a gordura, habilmente colocadas pelos ladrões.
Nesse dia não houve almoço.
O Graciosa faz um excelente percurso
nas provas locais e, por muitas vezes representa a Graciosa em S. Jorge e na
Terceira.
Até 2003 conquistou 13 Taças de ilha,
6 Campeonatos e 7 Torneios de Abertura.
Vai a duas finais da Taça Açores e por
duas vezes representa a Associação de Futebol de Angra do Heroísmo na Taça de
Portugal.
Nos escalões de formação é o clube
com mais troféus, fruto de um grande trabalho iniciado pelo Professor Manuel
Mendonça e prosseguido pelo Pedro Gil.
Mas o Graciosa não é só futebol. É
também música.
A minha geração assistiu ao
nascimento do Ritmo 2000, conjunto adquirido no Pico através do Padre Garcia.
Essa geração aprendeu mesmo a dançar ao ritmo das marchas e dos slows cantados
pela Bieta, pelo Chico Lobão ou pelo Gasparinho.
Este conjunto, que incluía também o
Emanuel, o Acácio e o Valdemiro, foi sofrendo transformações ao longo dos anos
e por ele passaram o Viegas, o Manuel José, o Manuel Maria, o Valdemar, o
Francisco Ávila, o José Silva, o Steven, o Valter Rui, o Helder, o Pedro Coelho,
o Nuno Bettencourt, a Edite, a Daniela, o Sérgio e muitos outros.
Este grupo animou inúmeros bailes e
festas do clube ao longo destes anos. Muitos filhos desta geração que vos falo
adormeceram ao som dos acordes melodiosos enquanto os seus pais davam ao pé na
sala minúscula da casa da D. Carolina Maria, e, depois, já neste enorme salão.
Esta gente também animava tertúlias
que acabavam, quase sempre, com o inevitável “solo mio” cantado, quase
solenemente, pelo Serra.
Gravaram dois discos, o que não era
muito normal nos conjuntos musicais daquele tempo.
Estas mulheres e estes homens, que
abdicavam de muita coisa para animarem os outros, não eram devidamente
compreendidos, segundo a sua perspetiva.
Começar a tocar e a cantar num baile
pelas 10 horas da noite e acabar quando o sol nascia, era um esforço quase
sobre-humano. E isto sem nada em troca.
Já fiz um desafio ao Valdemiro para
reunir todos os músicos que passaram pelo Ritmo 2000 para prepararem um
concerto.
Nos anos 80 houve um grupo de sócios,
liderados pelo Valter Melo, Ilberto Pereira e João Manuel Picanço, que resolveram
deitar mão à obra e construir esta sede. Não deve ter sido uma decisão fácil de
assumir, mas naquele tempo existia espírito empreendedor e tenacidade capazes
de ultrapassar as dificuldades.
Quem conheceu a anterior sede sabe
que a equipa de futebol não tinha condições. Os duches de água fria ficavam
mesmo na entrada do Clube e a água era esgotada para a estrada.
Tínhamos bons bailes e belas festas
onde os sócios e convidados eram bem recebidos, mas as condições eram de facto
muito más, daí termos de reconhecer que a construção desta nova sede foi o
momento mais marcante destes primeiros 75 anos de vida do Graciosa Futebol
Clube.
Hoje, ao olhar para trás, revejo os dirigentes,
treinadores, atletas e músicos e penso no quanto nós aprendemos com eles. Em
troca de nada deram muito para que este clube nunca interrompesse este percurso
de vida que hoje completa 75 anos.
São 75 anos divididos entre derrotas
e vitórias, entre tristezas e alegrias, mas sempre marcado por um convívio
fraterno.
É por isso que se diz: o Graciosa não
é melhor nem pior. É diferente.
Neste dia de festa é também
importante recordar todos os que serviram o clube, de um modo ou de outro,
nestes 75 anos.
No entanto, vou lembrar alguns que já
partiram e que a minha geração nunca esquecerá:
O Gasparinho, Marcelo Cunha, João
Luís Serra, Valter Melo, Rui Picanço (carcereiro), Berto Freitas, João Picanço
(cabaço), João Gabriel, Eusébio Ferreira, Filipe Albuquerque, Helmano, Vasco
Weber Vasconcelos, Arnaldo Nascimento, Luiz do Carmo Bettencourt, Manuel Gil,
Ruben Cardoso e Valdemar Clarimundo, um dos organizadores das bodas de ouro, há
25 anos atrás.
Em termos pessoais tenho uma dívida
de gratidão para com este clube. Foi aqui que aprendi a jogar futebol; foi aqui
que aprendi a ser dirigente e foi aqui que aprendi a ser treinador. Foi aqui
que entendi o que é espírito de grupo e respeito pelo próximo.
Termino, dizendo-vos:
Ó Graciosa,
Astro rei iluminante,
Tens fama airosa,
Nos Açores, teu jogar.
Mas se algum dia,
A virgem te proteger,
Serás um dia,
Quer de noite ou quer de dia,
E deixarás de sofrer.
Graciosa Futebol Clube, 1 de Novembro
de 2014.
1 comentário:
Todos sabem que o meu clube na Graciosa, cujas balizas defendi com pouco saber mas muita garra, é o Guadalupe. No entanto, no Graciosa (como no Marítimo)sempre me senti em casa e muitos dos que referes aqui muito contrubuiram, com a sua amizade, para que assim fosse.
Parabéns duplos: pelo 75º aniversário do Graciosa e pelo belo texto.
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