Edmundo da Cunha
Ribeiro
(04/03/1910 –
09/08/1987)
Era na sua tenda situada na rua
Serpa Pinto, por baixo do granel do senhor Francisco Barcelos, que estava
sempre. De avental marcado por nódoas das tintas que usava, permanecia invariavelmente
sentado de corpo curvado atrás da sua banca de trabalho, repleta de utensílios
próprios da profissão. Passava horas seguidas, agarrado aos sapatos, moldando
as solas, cozendo ou polindo, rodeado pelas suas ferramentas espalhadas pela
banca, sempre ao alcance das suas necessidades. E sapatos, muitos sapatos,
depositados num recanto da tenda esperando a sua vez para merecerem os cuidados
deste artífice.
Este era o sapateiro a quem a
minha família entregava os sapatos para as devidas reparações. Normalmente calhava-me
a mim levar os ditos em mau estado, quase sempre de biqueira aberta devido às
jogatanas no campo de S. Francisco, mais conhecido pelo campo da Rata, ou então
de sola gasta pelo uso intensivo, para os ir buscar uns dias depois já como
novos, prontos para mais uma temporada.
A tenda do senhor Edmundo, como
era conhecida a sua oficina, funcionava, também, como ponto de encontro de
muitos Graciosenses.
O chão era de cimento frio, que
contrastava com o calor humano que reinava naquele espaço. Nas paredes viam-se
alguns cartazes amarelados pelo tempo. Tinha um banco corrido num dos lados
onde se sentavam todos aqueles que procuravam saber as novas, que, naquele tempo
demoravam a chegar, trazidas pelos frequentadores e clientes que eram também os
seus amigos. Num dos cantos ficava uma cadeira de vimes, mais confortável, que
estava informalmente reservada ao Dr. Gregório ou ao Comandante Silveira, duas
figuras de referência que não dispensavam uma presença diária naquele espaço.
Por ali passavam médicos, comerciantes, sacerdotes, estudantes, carteiros,
professores, etc.. Uma amálgama de gente que refletia a sociedade Graciosense.
Antes da revolução dos cravos era
ali que se discutiam intensamente os assuntos que estavam na berra. Era ali que
chegavam outras maneiras de ver o mundo, porque muitos dos frequentadores
ouviam rádios não controlados pelo antigo regime e por aí sabiam a verdade, nua
e crua, sobre o que se passava no nosso país e no mundo. Era ali que se abordavam
os assuntos políticos, mais ou menos em surdina.
Acredito piamente que aquele
espaço deve ter merecido a atenção da polícia política, pois muito do que lá se
dizia, comentava e discutia, não era, de todo, bem visto pelo regime da altura.
Depois de Abril, com o advento
das comunicações e da televisão o nosso mundo mudou, mudaram também o país, a
região e a nossa ilha, mas a tenda do senhor Edmundo manteve-se inalterável.
Era um local de culto para os seus frequentadores que continuaram a abordagem
dos mesmos temas, só que de maneira mais desassombrada. Era o valor da
liberdade.
O senhor Edmundo tocou trombone
anos a fio na Filarmónica Recreio dos Artistas e terá pertencido aos seus
corpos sociais, dando, assim, um contributo para a cultura Graciosense. Era um
pescador de calhau exímio e, diz quem o conheceu, fazia uma caldeira muito
apreciada pelos amigos. Estava sempre pronto para pregar umas partidas aos mais
incautos que por ali passavam.
Apesar da modéstia e humildade o
senhor Edmundo era um homem culto e que cultivava a verdadeira amizade.
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