14 de março de 2012

Humilde e culto




Edmundo da Cunha Ribeiro

(04/03/1910 – 09/08/1987)

Era na sua tenda situada na rua Serpa Pinto, por baixo do granel do senhor Francisco Barcelos, que estava sempre. De avental marcado por nódoas das tintas que usava, permanecia invariavelmente sentado de corpo curvado atrás da sua banca de trabalho, repleta de utensílios próprios da profissão. Passava horas seguidas, agarrado aos sapatos, moldando as solas, cozendo ou polindo, rodeado pelas suas ferramentas espalhadas pela banca, sempre ao alcance das suas necessidades. E sapatos, muitos sapatos, depositados num recanto da tenda esperando a sua vez para merecerem os cuidados deste artífice.

Este era o sapateiro a quem a minha família entregava os sapatos para as devidas reparações. Normalmente calhava-me a mim levar os ditos em mau estado, quase sempre de biqueira aberta devido às jogatanas no campo de S. Francisco, mais conhecido pelo campo da Rata, ou então de sola gasta pelo uso intensivo, para os ir buscar uns dias depois já como novos, prontos para mais uma temporada.

A tenda do senhor Edmundo, como era conhecida a sua oficina, funcionava, também, como ponto de encontro de muitos Graciosenses.

O chão era de cimento frio, que contrastava com o calor humano que reinava naquele espaço. Nas paredes viam-se alguns cartazes amarelados pelo tempo. Tinha um banco corrido num dos lados onde se sentavam todos aqueles que procuravam saber as novas, que, naquele tempo demoravam a chegar, trazidas pelos frequentadores e clientes que eram também os seus amigos. Num dos cantos ficava uma cadeira de vimes, mais confortável, que estava informalmente reservada ao Dr. Gregório ou ao Comandante Silveira, duas figuras de referência que não dispensavam uma presença diária naquele espaço. Por ali passavam médicos, comerciantes, sacerdotes, estudantes, carteiros, professores, etc.. Uma amálgama de gente que refletia a sociedade Graciosense.

Antes da revolução dos cravos era ali que se discutiam intensamente os assuntos que estavam na berra. Era ali que chegavam outras maneiras de ver o mundo, porque muitos dos frequentadores ouviam rádios não controlados pelo antigo regime e por aí sabiam a verdade, nua e crua, sobre o que se passava no nosso país e no mundo. Era ali que se abordavam os assuntos políticos, mais ou menos em surdina.

Acredito piamente que aquele espaço deve ter merecido a atenção da polícia política, pois muito do que lá se dizia, comentava e discutia, não era, de todo, bem visto pelo regime da altura.

Depois de Abril, com o advento das comunicações e da televisão o nosso mundo mudou, mudaram também o país, a região e a nossa ilha, mas a tenda do senhor Edmundo manteve-se inalterável. Era um local de culto para os seus frequentadores que continuaram a abordagem dos mesmos temas, só que de maneira mais desassombrada. Era o valor da liberdade.

O senhor Edmundo tocou trombone anos a fio na Filarmónica Recreio dos Artistas e terá pertencido aos seus corpos sociais, dando, assim, um contributo para a cultura Graciosense. Era um pescador de calhau exímio e, diz quem o conheceu, fazia uma caldeira muito apreciada pelos amigos. Estava sempre pronto para pregar umas partidas aos mais incautos que por ali passavam.

Apesar da modéstia e humildade o senhor Edmundo era um homem culto e que cultivava a verdadeira amizade.

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