Firmínio Rodrigues
Picanço
(23/11/1931 – 23/12/2005)
O sol já ia alto quando a vigia
do Pico Negro dá o sinal de baleia à vista e passa de imediato a informação ao
seu colega do Monte da Ajuda. Este agarra no foguete, apressa-se para o
exterior chegando a brasa do cigarro à pólvora que fez o foguete subir e
disferir, com estrondo, um forte sinal ouvido em toda a freguesia. Era esta a
indicação que muitos esperavam para, numa correria louca, se porem o mais
rápido possível junto do seu bote, na Barra ou na Calheta para começar mais um
dia de caça ao cachalote.
O Rodrigues era um homem alto e
forte. Sustentava a sua família com a baleação e complementava o rendimento com
proveitos advindos do mergulho. Era trancador, porventura o posto mais difícil nas
companhas pois é ele que, por força da sua função, estava mais perto do
imprevisível cachalote e era da sua perícia que dependia o sustento dos
restantes tripulantes.
Em reação ao sinal o Rodrigues foi
até sua casa na rua das Violas, agarrou apressadamente no farnel e, de calças
arregaçadas, correu até à Barra onde descalçou e arriou o bote com a ajuda dos
seus colegas que, entretanto, foram chegando.
O bote Cristovão Manuel, já com o
mestre José Vieira Goulart ao leme e à força dos remadores rumou até meio da
baía para aí ser apanhado e rebocado pela Estefânia Correia, pois não havia
tempo a perder. O mesmo terá acontecido com o bote saído da Calheta, que se pôs
a jeito de ser apanhado pela Estefânia no rumo entre a Barra e o local onde o
cachalote tinha sido avistado, lá para os lados do Pico Negro.
Havia uma sinalética própria
desta atividade, num jogo de bandeiras que anunciavam se já existia baleia
trancada ou mesmo morta. Nesse dia nada tinha sido indicado, pelo que se previa
um calmo regresso a casa, muito embora de mãos a abanar.
Mas não foi isso que aconteceu,
infelizmente.
Já passava das oito horas da
noite quando me apercebi do exagerado movimento na minha rua, que era a mesma
do Hospital.
A eletricidade ainda estava ligada
mas lá fora imaginava uma noite de trevas. Ouviam-se vozes apressadas, ruído de
automóveis e, depois, o choro de mulheres que subiam a rua. Algo não estava bem.
Meu pai resolveu sair para saber
o que se passava, enquanto nós, eu e a minha mãe, esperávamos ansiosamente por explicações
sobre o que estava a acontecer. Sim - disse meu pai no regresso - era mesmo
grave. Tinha havido um acidente na caça à baleia e já existiam mortos e alguns
desaparecidos.
Ficamos a tentar imaginar o que
poderia ter sucedido, enquanto as horas passavam vagarosamente. As perguntas
surgiam às catadupas e as respostas tardavam. O que poderia ter corrido mal?
Com o alvorecer e depois de uma
noite em branco repleta de pensamentos sombrios e a imaginar o sofrimento
daqueles que tinham familiares nas embarcações envolvidas, vieram as primeiras
explicações.
Depois da faina a lancha Estefânia
Correia fez o reboque dos botes baleeiros de regresso aos portos, tal como o
fizera em muitas outras ocasiões. Deixou o primeiro na Calheta e trouxe o Cristovão
Manuel até à Barra onde era varado normalmente.
Começava a escurecer e, por isso,
a entrada na Barra não era fácil, muito embora a existência de dois pontos de
luz, alimentados a petróleo, davam a indicação precisa do enfiamento correto
para entrar de uma forma segura.
A manobra não terá corrido como
se esperava. O Cristovão Manuel, empurrado pela onda na carreira da Barra, terá
ultrapassado a Estefânia Correia. O mestre José Vieira Goulart, oficial do
bote, prevendo o desfecho, ainda tentou a todo o custo aguentar o leme em
direção a terra, mantendo o bote na esteira da onda. Não dava tempo, era
preciso cortar o cabo. Correu por cima dos bancos de machado em punho, mas era
tarde demais. O cabo esticou e o bote voltou-se com os seus sete tripulantes a
bordo. Não é difícil imaginar o pânico daqueles homens que, embora habituados
às condições adversas do mar que lhes dava o pão, terão sido apanhados de
surpresa, no início daquela noite de novembro de 1967. Temendo serem atingidos
pela lancha que circulava às voltas procurando sobreviventes e enredados na
palamenta do bote baleeiro constituída por remos, pás, velas, mastros, selhas,
cabos e ainda desorientados por não enxergarem a ilha que lhes poderia trazer a
salvação, estes homens lutaram até à exaustão, constando mesmo que alguns,
desesperadamente, terão nadado em direção oposta à da terra até ao limite das
suas forças.
Morreram o mestre José Vieira
Goulart (oficial do bote), Arnaldo de Sousa, Izalino Nunes, Gabriel Machado,
Albino Horta e José Soares. Sobreviveu o Firmínio Rodrigues Picanço, aquele
que, afinal, estava sempre mais perto do perigo. A sua destreza dentro de água
ditada pelos anos de experiência como mergulhador e a frieza com que encarou o
sinistro terão sido cruciais para escapar ao destino dos companheiros.
O ano de 1967 ficará indelevelmente
marcado na nossa memória coletiva por este desastre.
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