27 de março de 2012

O sobrevivente da Barra



Firmínio Rodrigues Picanço

(23/11/1931 – 23/12/2005)

O sol já ia alto quando a vigia do Pico Negro dá o sinal de baleia à vista e passa de imediato a informação ao seu colega do Monte da Ajuda. Este agarra no foguete, apressa-se para o exterior chegando a brasa do cigarro à pólvora que fez o foguete subir e disferir, com estrondo, um forte sinal ouvido em toda a freguesia. Era esta a indicação que muitos esperavam para, numa correria louca, se porem o mais rápido possível junto do seu bote, na Barra ou na Calheta para começar mais um dia de caça ao cachalote.

O Rodrigues era um homem alto e forte. Sustentava a sua família com a baleação e complementava o rendimento com proveitos advindos do mergulho. Era trancador, porventura o posto mais difícil nas companhas pois é ele que, por força da sua função, estava mais perto do imprevisível cachalote e era da sua perícia que dependia o sustento dos restantes tripulantes.

Em reação ao sinal o Rodrigues foi até sua casa na rua das Violas, agarrou apressadamente no farnel e, de calças arregaçadas, correu até à Barra onde descalçou e arriou o bote com a ajuda dos seus colegas que, entretanto, foram chegando.   

O bote Cristovão Manuel, já com o mestre José Vieira Goulart ao leme e à força dos remadores rumou até meio da baía para aí ser apanhado e rebocado pela Estefânia Correia, pois não havia tempo a perder. O mesmo terá acontecido com o bote saído da Calheta, que se pôs a jeito de ser apanhado pela Estefânia no rumo entre a Barra e o local onde o cachalote tinha sido avistado, lá para os lados do Pico Negro.

Havia uma sinalética própria desta atividade, num jogo de bandeiras que anunciavam se já existia baleia trancada ou mesmo morta. Nesse dia nada tinha sido indicado, pelo que se previa um calmo regresso a casa, muito embora de mãos a abanar.

Mas não foi isso que aconteceu, infelizmente.

Já passava das oito horas da noite quando me apercebi do exagerado movimento na minha rua, que era a mesma do Hospital.

A eletricidade ainda estava ligada mas lá fora imaginava uma noite de trevas. Ouviam-se vozes apressadas, ruído de automóveis e, depois, o choro de mulheres que subiam a rua. Algo não estava bem.

Meu pai resolveu sair para saber o que se passava, enquanto nós, eu e a minha mãe, esperávamos ansiosamente por explicações sobre o que estava a acontecer. Sim - disse meu pai no regresso - era mesmo grave. Tinha havido um acidente na caça à baleia e já existiam mortos e alguns desaparecidos.

Ficamos a tentar imaginar o que poderia ter sucedido, enquanto as horas passavam vagarosamente. As perguntas surgiam às catadupas e as respostas tardavam. O que poderia ter corrido mal?

Com o alvorecer e depois de uma noite em branco repleta de pensamentos sombrios e a imaginar o sofrimento daqueles que tinham familiares nas embarcações envolvidas, vieram as primeiras explicações.

Depois da faina a lancha Estefânia Correia fez o reboque dos botes baleeiros de regresso aos portos, tal como o fizera em muitas outras ocasiões. Deixou o primeiro na Calheta e trouxe o Cristovão Manuel até à Barra onde era varado normalmente.

Começava a escurecer e, por isso, a entrada na Barra não era fácil, muito embora a existência de dois pontos de luz, alimentados a petróleo, davam a indicação precisa do enfiamento correto para entrar de uma forma segura.

A manobra não terá corrido como se esperava. O Cristovão Manuel, empurrado pela onda na carreira da Barra, terá ultrapassado a Estefânia Correia. O mestre José Vieira Goulart, oficial do bote, prevendo o desfecho, ainda tentou a todo o custo aguentar o leme em direção a terra, mantendo o bote na esteira da onda. Não dava tempo, era preciso cortar o cabo. Correu por cima dos bancos de machado em punho, mas era tarde demais. O cabo esticou e o bote voltou-se com os seus sete tripulantes a bordo. Não é difícil imaginar o pânico daqueles homens que, embora habituados às condições adversas do mar que lhes dava o pão, terão sido apanhados de surpresa, no início daquela noite de novembro de 1967. Temendo serem atingidos pela lancha que circulava às voltas procurando sobreviventes e enredados na palamenta do bote baleeiro constituída por remos, pás, velas, mastros, selhas, cabos e ainda desorientados por não enxergarem a ilha que lhes poderia trazer a salvação, estes homens lutaram até à exaustão, constando mesmo que alguns, desesperadamente, terão nadado em direção oposta à da terra até ao limite das suas forças.

Morreram o mestre José Vieira Goulart (oficial do bote), Arnaldo de Sousa, Izalino Nunes, Gabriel Machado, Albino Horta e José Soares. Sobreviveu o Firmínio Rodrigues Picanço, aquele que, afinal, estava sempre mais perto do perigo. A sua destreza dentro de água ditada pelos anos de experiência como mergulhador e a frieza com que encarou o sinistro terão sido cruciais para escapar ao destino dos companheiros.

O ano de 1967 ficará indelevelmente marcado na nossa memória coletiva por este desastre.

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