6 de junho de 2012

Uma vida de trabalho duro


Diógenes da Silva Lima

(04/12/1920 – 19/02/1988)

Em casa preparava-se mais um fim-de-semana na Praia. Era um ritual que levava o seu tempo, pois a viagem era grande. Apesar de serem apenas seis quilómetros de distância, aquela viagem parecia longa.

Com os poucos carros que circulavam na ilha, os transportes coletivos e de cargas assumiam um papel preponderante na movimentação de pessoas e bens entre as quatro freguesias da Graciosa. As festas da ilha obrigavam a vários desdobramentos até levar a casa os últimos passageiros. No período do Carnaval estas camionetas faziam as visitas aos clubes e ainda transportavam os resistentes folgazões que, depois do último baile deste período e já quando nascia um novo dia, davam um passeio pela ilha. Existiam também algumas indústrias, tais como a cal, a telha e os refrigerantes que requeriam transporte para a distribuição e exportação.

Fomos até à garagem e oficina do senhor Diógenes, no Atalho, e esperámos pela hora de nos abrirem as portas da gasta camioneta que nos haveria de levar nesta viagem. Tinha o motor na frente e um capô de abrir para os lados. O corpo da camioneta desenvolvia-se para traz do motor, o que lhe dava um ar de tartaruga, nome pela qual era popularmente conhecido este meio de transporte. A lentidão poderia muito bem ser outra explicação para esta alcunha. Os passageiros entraram e o condutor, com a ajuda do cobrador, colocou no tejadilho várias encomendas e a mala do correio, que haveriam de ser distribuídas pelos destinatários ao longo dos caminhos da ilha.

Compramos o respetivo bilhete, de cor verde e encimado pelo nome de Diógenes da Silva Lima & Filhos Limitada, cortado, com uma pequena régua de alumínio, numa diagonal até à indicação do preço. Três escudos e cinquenta centavos era o custo desta viagem. Já com a camioneta em andamento, vinha o cobrador, sempre com a sua mala de cabedal a tiracolo, com uma espécie de alicate, fazer um furo no lugar correspondente ao percurso.

A viagem começava com piso razoável, mas grande parte do percurso ainda era feito em estrada de macadame. O caminho do Quitadouro, em direção à Praia, começava logo com uma grande subida, mas, mais ao menos a partir de meia viagem, no Formigueiro, havia uma descida abrupta, o que levava o condutor a redobrar os cuidados para levar os seus passageiros ao destino em segurança. A nossa tartaruga, de um modo esforçado, lá conseguia dar conta do recado, e completava assim mais um percurso, que terminava numa outra garagem, na Rua Rodrigues Sampaio, na Praia, onde o condutor, com o seu olhar clínico ditado pela experiência, via os níveis de óleo e de água e tratava de a pôr operacional para fazer mais uma viagem.

O senhor Diógenes a 22 de outubro de 1941 adquire, por dezasseis contos, o negócio de fazendas e mercearias, com sede na Rua Fontes Pereira de Melo, na Praia, filial da firma Costa e Medina Limitada, para o qual trabalhava desde 1936.

Quando tinha 18 anos constrói o seu primeiro autocarro, uma miniatura em madeira. Mal sabia ele que a sua vida empresarial estaria ligada aos transportes coletivos até ao dia da sua morte.

Em 16 de junho de 1948 recebe o seu primeiro táxi, um Austin. A 2 de agosto do ano seguinte recebe outro táxi, também daquela marca. A 29 de janeiro de 1951 recebe mais um táxi, também Austin e a 30 de março de 1954 recebe a quarta viatura para serviço de aluguer com condutor.  

Em 1954 compra um chassis de um autocarro e trá-lo até à Graciosa no navio Lima. É colocado num batelão em Santa Cruz, mas devido à fraca capacidade do pau de carga do porto, esse batelão é rebocado por uma “gasolina” baleeira até à Praia, onde finalmente é descarregado para terra firme. A carroçaria é feita na Graciosa pelos irmãos João e Manuel Machado, em madeira e forrada posteriormente a alumínio. Até os estofes eram feitos cá. Esta opção pela importação de chassis tinha a ver com a inexistência de meios para descarregar um autocarro completo.

Na altura a empresa tinha a sede na Praia. A primeira viagem desta camioneta dá-se a 23 de outubro de 1954, um sábado, fazendo um percurso de 52 quilómetros e realizando uma receita de 614$50.

As frequências foram aumentando, até que a partir de 9 de dezembro de 1957 passa a haver carreiras diárias.

A 24 de dezembro de 1955 recebe mais dois chassis que foram novamente carroçados pelos irmãos Machado, um destinado a carga e outro a passageiros. Curiosamente estes chassis saíram de Lisboa no navio Terceirense, a 20 de novembro, mas não puderam desembarcar devido ao mau estado do mar. Foram até Ponta Delgada e voltaram, desta vez no navio Lima, tendo desembarcado nesta ilha na véspera de Natal daquele ano.

Em 1958 a sede passa para Santa Cruz. Em 1968 dá-se uma alteração estatutária, passando a empresa a designar-se Diógenes da Silva Lima e Filhos Limitada.

Enquanto vai desenvolvendo a sua atividade nos transportes coletivos continua a investir nos táxis, chegando a ter 10 em circulação, espalhados pelas praças das quatro freguesias. Este negócio, no entanto, é abandonado a seguir à revolução de 1974. Mais tarde termina também com o serviço de transporte de mercadorias.

Em 1980 transforma-se em Empresa de Transportes Coletivos da Ilha Graciosa, já com a participação da Câmara Municipal de Santa Cruz da Graciosa no capital social.

A vida deste empresário não foi fácil. O recurso ao crédito e as dificuldades próprias da época, que desfasavam o período do investimento do período do respetivo retorno, podiam afastar deste tipo de negócio os menos afoitos, mas não o senhor Diógenes. Nunca se deu por vencido e empenhou-se de corpo e alma neste seu projeto, que acabou mesmo por ser o seu projeto de vida, enfrentando e minimizando todas as contrariedades que surgiram.

As dificuldades nos transportes destes equipamentos de grande dimensão eram resolvidas com imaginação. Se um batelão não chegasse, juntava-se um outro e colocavam-se alguns postes de telefone, atravessados, para dar mais consistência e equilíbrio a este meio de transporte adaptado. A falta de peças suplentes era resolvida com muito trabalho. Frequentemente as suas oficinas trabalhavam ininterruptamente, por vezes inventando peças, para colocar o autocarro ao serviço logo pela manhã. São conhecidas histórias de reparações feitas mesmo durante as viagens ou mudanças de motor durante a noite para que no dia seguinte não faltasse transporte a muitos Graciosenses que dele dependiam.

O senhor Diógenes foi um empresário que teve uma vida de trabalho duro e de muita dedicação ao seu negócio, que não lhe terá rendido muito em termos financeiros, mas certamente que o preencheu. Podíamos vê-lo agarrado ao volante de uma das suas camionetas a conduzir horas a fio, a supervisionar a sua oficina ou a vender bilhetes no seu guichet. Era um homem que nunca parava.

Nos seus tempos livres gostava de tocar violão e dançar modas de viola nas festas de Carnaval que aconteciam nos clubes espalhados pela ilha.

A ousadia, a tenacidade e a coragem com que tratou os seus negócios fazem dele um empresário que se destacou na Ilha Graciosa e que importa recordar.

1 comentário:

blogas disse...

Muito bom. Lembro-me bem da parte final!
Fernando Alvarino