25 de janeiro de 2013

Médico do povo


 
Manuel Gregório Júnior

(12/04/1902 – 15/07/1986)

Cresci ao lado do meu primo e companheiro de brincadeiras, o Rui Manel, filho do Dr. Gregório. Nos períodos de férias passava, muitas vezes, as noites na sua casa para aproveitar e brincar até tarde e para recomeçar o divertimento bem cedo.

Foram belos tempos, aqueles. A imaginação e a criatividade produziam ideias para os jogos que nos entretinham dias a fio.

Correr de patins no enorme corredor, tocar piano no salão do fundo, jogar à bola no pátio ou lutar com espadas no quintal, eram os nossos passatempos favoritos.

Depois de vencidos pelo cansaço, a noite e o sono recuperador punha-nos aptos para, no dia seguinte, começar tudo de novo, com renovada energia.

O tio Gregório era um homem de hábitos. Noctívago desde que me lembro, nunca se deitava antes das quatro da manhã.

Passava as noites a passear na praça ou, quando o tempo não permitia, abrigado no bar situado por baixo do coreto ou então num qualquer clube jogando ou vendo jogar às cartas e ao dominó. Aquele costume de se deitar tarde fazia-o procurar os foliões ou os convivas de uma qualquer petiscada, para assim ganhar mais umas horas de companhia. Nos dias de maior invernia ou quando não encontrava ninguém a jeito, passeava no seu enorme corredor até à hora de se deitar.

Dava uma volta à ilha diariamente, com ele ao volante enquanto a sua saúde permitiu, ou então conduzido por alguém amigo depois de deixar de conduzir. Confessava que nesse passeio via sempre algo que lhe escapara nas vezes anteriores. Eram conhecidas as suas paragens, na companhia do Comandante Silveira, para ouvir o chilrear de um determinado pássaro que, segundo eles, os presenteava com uma exibição sempre à mesma hora. Já na fase final da sua vida cheguei a ter o privilégio de passear com ele e de ouvir as suas histórias e vivências contadas na primeira pessoa, com a sua inconfundível voz afável. 

Os graciosenses habituaram-se a vê-lo com um sobretudo ou uma gabardina por cima do seu fato com colete, polainas nos sapatos, chapéu na cabeça e sempre com uma varinha numa das mãos. No bolso interior do casaco transportava uma cigarreira de prata, onde colocava cuidadosamente os cigarros para o dia, e ainda uma boquilha para reduzir os efeitos nefastos do tabaco. Quando chegava a casa, colocava a varinha no bengaleiro e trocava o sobretudo ou gabardina por um robe cor de vinho.

O Dr. Gregório foi médico nesta ilha mais de quarenta anos, a grande maioria deles sozinho. Foi Delegado de Saúde, Médico Municipal e tinha consultório no rés-do-chão da sua casa. Era das consultas que deveria tirar a maior parte dos seus proveitos, mas isso nunca aconteceu porque não levava dinheiro. Aos pobres, quando lhe perguntavam quanto era a consulta, respondia “porque é que perguntas, se sabes que não me podes pagar?” Por outro lado ficava indignado quando os que podiam pagar não lhe perguntavam nada.   

Muitas noites o tio Gregório era procurado para acudir a quem sofria. Era frequente vê-lo sair noite dentro, muitas vezes já com a iluminação pública desligada, para tratar doentes. Entrava em casas de pobres e ricos, recebido quase como um salvador. As pessoas tinham fé nos seus conhecimentos para debelar as doenças que os afligiam

Dizem que era quase infalível nos seus diagnósticos, sempre feitos sem apoios de meios técnicos, porque não os havia. O seu estetoscópio, o toque com dois dedos e sua rara intuição, indicavam-lhe a origem do mal e o caminho a seguir para a cura, com uma prescrição que poderia ser um medicamento feito pelo senhor Juvenal “da Farmácia”, ou mesmo o chá mais indicado para aquela maleita. 

Um dia, devido à gravidade da situação e também pelo mau tempo que impedia a “gasolina” da baleia de evacuar um doente, resolveu fazer uma operação para a ablação do apêndice, como último recurso para salvar uma vida. A cirurgia correu bem, mas o tio Gregório apanhou um susto. Nesse dia tinha dado conta do desaparecimento da sua aliança que, chegou a temer, poderia, muito bem, estar no abdómen do seu doente. Felizmente que a dúvida foi desfeita quando verificou que a tinha guardado cuidadosamente antes da operação.

O escritor Augusto Gomes, aquando da sua morte, disse sobre ele: “Atendendo doentes de toda a ilha, os seus diagnósticos tornar-se-iam célebres pela infalibilidade. Salvou centenas de vidas. Seria fastidioso enumerar os casos quase lendários acerca do Dr. Gregório. Aliava à inegável competência profissional um espírito filantrópico e um desprendimento pelo fausto, pela opulência, não cobrando honorários. O povo adorava-o. Por quatro vezes teve o ensejo de o manifestar. Primeiro quando se deslocou a Ponta Delgada em tratamento, teve o seu regresso marcado por uma manifestação jubilosa, na qual se incorporaram milhares de pessoas. A segunda deu-se quando completou 70 anos. A terceira, aquando da inauguração do seu busto (…). E finalmente, a quarta e derradeira, ao derramar lágrimas de sincero pesar junto ao túmulo do seu filho dilecto, que tão relevantes serviços prestou à sua terra”.

Na mesma altura o senhor Raúl Correia da Silva escreveu: “Homem de carácter íntegro, de extrema bondade e de evidente modéstia, era detentor de uma inteligência invulgar, o que lhe permitiu concluir brilhantemente o curso de medicina, em Coimbra, no ano de 1929. De tal modo que, tendo-lhe sido dirigido convite para ocupar as funções de assistente da respectiva faculdade, a sua reconhecida modéstia entendeu por bem decliná-lo. Mas para além de Homem de bem, foi também médico de competência rara que, durante 40 anos, deu o melhor do seu talento e espalhou ininterruptamente a semente da caridade junto dos seus conterrâneos, já que não cobrava praticamente nada pelo exercício do seu múnus profissional, limitando-se aos parcos vencimentos que auferia pelo exercício dos cargos de delegado de saúde e de médico municipal”.

Estes dois testemunhos dizem muito sobre a personalidade deste homem e a sua ligação à Graciosa e aos graciosenses. Ficou mesmo conhecido como “médico do povo”, cognome que aceitava com uma indisfarçável humildade.

Esse mesmo povo, a quem ele deu muito, juntou-se e ergueu-lhe um busto de bronze, ainda em sua vida, cuja inauguração constituiu uma emocionante homenagem acompanhada por centenas de pessoas que deste modo quiseram agradecer tudo o que este homem fez pelos filhos da sua terra.

O teatro era uma das suas paixões. Encenou e representou várias peças de teatro levadas à cena na Graciosa e noutras ilhas dos Açores.

Foi agraciado pelo Presidente da República com a Ordem de Mérito, antes da revolução de 1974 e em 1979, com o Grau da Ordem de Benemerência. A Região Autónoma dos Açores, a título póstumo, atribuiu-lhe a Insígnia Honorifica, pelos relevantes serviços prestados à sua comunidade.

24 de janeiro de 2013

O Congresso


Na reunião magna dos socialistas açorianos, que decorrerá no próximo fim-de-semana, o Dr. Vasco Cordeiro, Presidente do PS, apresentará uma Moção de Orientação de Política Global intitulada “Renovação com Confiança por uma Autonomia com Futuro”.

O título deste documento diz muito sobre o seu conteúdo. Enfatiza-se a renovação de protagonistas, apela-se a uma nova geração de políticas para garantir a sustentabilidade da Autonomia dos Açores.

O Partido Socialista, como grande partido da Autonomia, honra-se do seu passado e da obra feita por todas essas ilhas.

No entanto este partido não se deslumbrou com o seu histórico nem se aquietou no conforto dos bons resultados das suas políticas.

Foi capaz de se renovar de uma forma exemplar, sobressaindo a união de todos em volta de um projeto político que só tem um dono: o povo açoriano.

Agora o Partido Socialista prepara-se para ganhar os desafios que tem pela frente nos próximos tempos, que não serão poucos, como se sabe.

O Governo da República tenta, a todo o custo, criar dificuldades em nome da sua linha de atuação austera, como não há memória.

O poder local, a lei das finanças regionais, a desresponsabilização nas funções do estado ou a tentativa de apropriação de ativos da Região, são alguns dos constrangimentos que já se advinham.

O PS é o partido melhor colocado para defender os Açores dos ataques centralistas neste momento difícil e foi por isso, sem qualquer dúvida, que os açorianos lhes deram um mandato inequívoco para governar a Região.

17 de janeiro de 2013

ALRAA - 16/01/2013


Mais uma semana negra


Esta semana Passos Coelho veio aos Açores fazer um discurso hermético e descolorido. Aliás, a especialidade do primeiro-ministro é pintar de cinzento tudo o que diz. Enfatizou as dificuldades do país com convicção e acenou, a medo, com melhoras lá para a frente, que ninguém, no seu prefeito juízo, consegue vislumbrar.

Esta sua intervenção no congresso do PSD mereceu tímidos aplausos dos militantes do seu partido, talvez desanimados e desiludidos com a ineficácia do seu líder na resolução desta crise, que ele garante não ser da sua responsabilidade, mas que todos os portugueses sabem que foi ele que a precipitou logo a partir da sua tomada de posse.

Ficou também confirmado, através dos dados divulgados pelo Banco de Portugal na última terça-feira, que a recessão em 2013 vai ser mais grave do que se previa, com menos consumo e mais 88 mil postos de trabalho destruídos.

O desacerto deste governo, de matriz ultra liberal, é uma constante e, mais do que isso, é uma triste realidade que está a levar os portugueses ao desespero. Falham previsões atrás de previsões e continuam em frente. Faz lembrar a banda do Titanic que continuou a tocar enquanto o navio se afundava.

O relatório do FMI, encomendado pelo governo, contém uma série de propostas indiscritíveis que, a serem assumidas, irão esmagar, ainda mais, o rendimento dos portugueses. A OCDE também está por cá para colaborar na reforma do estado que, segundo se percebe, vai avançar a direito, sem esperar pela opinião de quem quer que fosse, tal como aconteceu com a reorganização das freguesias agora promulgada pelo Presidente da República.

A clima social por esse país fora é de tal gravidade que gente lúcida e com responsabilidade moral inatacável, como é o caso do Dr. Freitas do Amaral, já prevê a possível queda do governo de Passos Coelho.

Esta foi mais uma semana a correr mal.

11 de janeiro de 2013

Mestre da viola



A oficina do mestre José Juventino - com era mais conhecido o senhor José Gil de Ávila, por ter sido esse o nome de seu pai – ficava ao fundo da rua do Saco. Antes esteve situada na atual rua 25 de Abril e depois na rua Infante D. Henrique.

Adivinhava-se a sua localização pelo amontoado de tábuas encostadas às paredes, secando ao sol, para depois servirem de matéria-prima aos artistas daquela carpintaria e marcenaria, ele e os seus três filhos, que as transformariam em mobílias, armários, portas, janelas, mesas, cadeiras, soalhos, vasilhame ou cabos para utensílios agrícolas.

No seu interior, presas nas paredes ou espalhadas por cima dos bancos de trabalho, existiam várias ferramentas: serras, sutas, esquadros, maços, serrotes de ponta, serrotes de costas, berbequins manuais, plainas, martelos, etc.

Por cima do chão, que antes era nu e frio, acumulavam-se os cavacos de madeira nascidos na ranhura das plainas que, num vai vem frenético, iam dando forma e sentido à madeira. Durante a jornada, para não se perder muito tempo, empurravam-se as aparas e os cavacos para os cantos da tenda, mas no final de cada dia eram queimados mesmo ali do lado de fora da porta.

No teto viam-se alguns moldes e várias violas da terra carinhosamente construídas pelo mestre José Juventino. No início moldava pacientemente a rebelde madeira com que construía as violas com vapor que saía de panelas com água a ferver. Mais tarde construiu as suas próprias formas que, no fundo, lhe facilitavam a vida nesta atividade.

Dali saía quase tudo o que fosse possível moldar. Faziam trabalhos mais toscos, como coberturas de casas, ou moldes para as obras da Junta Geral, mas era na marcenaria que aquela oficina se destacava mais. O mestre José Juventino e os seus filhos deixaram nesta ilha, sobretudo nas casas mais abastadas, mobílias que ainda hoje são muito apreciadas.

Certo dia encomendaram-lhe um candeeiro tendo como corpo um fuso igual ao dos lagares. Depois de fazer as suas contas lá acabou por desenhar um esboço que o ajudaria a concretizar mais uma obra de arte. Apesar de ter pouca instrução, como era normal no tempo em que se criou, tinha conhecimentos empíricos de matemática capazes de o ajudarem a resolver alguns problemas ligados à sua profissão.

Era naquela oficina que vi fazerem piões que depois comprava para jogar com os meus amigos na escola ou na praça. Bocados de madeira amorfos iam-se enformando à custa da rotação do torno e da mão ágil do mestre José Juventino. Foi também nessa carpintaria que vi construir o meu primeiro carro de ladeira que utilizei em inúmeras brincadeiras durante vários anos da minha infância.

Dizem aqueles que o conheceram bem que gostava de fazer duas coisas na vida: trabalhar e tocar viola da terra. Só era visto de duas formas, ou curvado sobre a sua bancada ou então carregando a sua viola.

Andava de casa em casa, de clube em clube, ora tocando nas matanças do porco, ora animando os bailes com as modas de viola, onde mandava como ninguém. Nesta sua faceta era também muito bom.

Tinha conhecimentos musicais e isso dava-lhe mais traquejo e versatilidade para poder acompanhar o acordeão do José Berto, a voz do Joaquim dos Fados ou o piano da D. Nizalda Barcelos. 

Foi músico na centenária Filarmónica Recreio dos Artistas, onde também desempenhou cargos nos seus órgãos sociais. O trombone era o seu instrumento na banda que serviu durante longos anos.

Gostava muito de se juntar com os amigos em concorridas petiscadas que acabavam, quase sempre, em alegres cantorias acompanhadas pela sua inseparável viola.

O senhor José Juventino foi um artista nestas duas artes que foram, sem dúvida, a paixão de uma vida.

10 de janeiro de 2013

Ano fora discurso novo


Confesso que não ouvi a mensagem de Ano Novo do nosso Presidente da República. Não a ouvi por nenhuma razão em especial ou movido por qualquer preconceito, mas apenas por não me despertar qualquer tipo curiosidade, até porque do mais alto magistrado da nação já não espero grande coisa, sentimento que comungo com uma grande parte dos portugueses.

Com esta minha linguagem acabei por levar uma chapada com luva branca, não só por não ter avaliado bem a intervenção política do Presidente da República naquela que seria a sua primeira aparição no novo ano, mas também por ter ignorado a sua capacidade de avaliar os danos que esta política de Passos, Gaspar e companhia provocam aos portugueses e de dar um puxão de orelhas a quem nos levou para este atoleiro em que se encontra Portugal.

Eu - que assumo ser um simples mortal que muitas vezes se engana e que vive carregado de dúvidas, ao contrário do Chefe da Nação - tenho de confessar que, mais uma vez, falhei.

O Presidente da República reconheceu as dificuldades do ano velho, confirmou que o ano novo vai ser difícil e corroborou a certeza que todos temos de que o país empobreceu e que vai empobrecer ainda mais por via do aumento imenso e nunca visto da carga fiscal.

Mas não foi só. Falhei logo a seguir - e isto só pode dizer que são falhanços a mais - quando pensei que o Dr. Mota Amaral iria deixar passar este “deita abaixo” sem qualquer reparo.

Num artigo publicado nas páginas do jornal Açoriano Oriental, com o título “OE 2013 – a prova de fogo”, o Dr. Mota Amaral desfere um ataque a Passos Coelho e aos seus ministros reconhecendo que a situação do país tem vindo a piorar, ao contrário do que o Governo diz, criticando-o duramente por ter sido mais troikista que a troika e por não ter cumprido o que prometeu na campanha, nomeadamente na questão dos cortes nos subsídios de férias e de natal e nas pensões.

Reconheço a coragem destes dois políticos, que, muito certamente, estarão incomodados com estas e outras políticas que podem conduzir a uma, já eminente, rutura social.

No entanto não posso compreender porque não usaram os mecanismos que estão ao seu dispor: o veto em Belém, no caso do primeiro e o voto contra em São Bento, no caso do segundo.

Vamos ver em 2014…

3 de janeiro de 2013

100 anos é muito tempo


Há cem anos atrás, gente de visão larga e de espírito empreendedor, gente daquelas que faz coisas, resolveu fundar uma filarmónica para animar as festas profanas e dignificar e acompanhar as manifestações da fé do nosso povo.

A Filarmónica Recreio dos Artistas surgiu numa cisão com outra filarmónica, a Liberdade, processo que não terá sido muito pacífico, havendo mesmo algumas ameaças de pancadaria e metendo o tribunal pelo meio.

Lembro-me da imensa atividade desta instituição. Era uma casa animada, em que, para além dos ensaios da sua filarmónica, decorriam a preparação das fantasias, os bailes e onde ensaiava também um grupo de teatro. No verão a sua cerca anexa servia para apresentações de teatro, para bailes e ainda para assistir ao cinema.

Hoje esta casa está bem viva, com inúmeras atividades, destinadas a diversas idades, desde crianças até aos mais maduros. A Filarmónica, como habitualmente a denominamos, e os seus dirigentes, tem contrariado aquela ideia pré-concebida e pessimista de que já não há quem se interesse por estas coisas.

Temos de agradecer às mulheres e aos homens que hoje dirigem esta e outras instituições, que lhes dão vida, temos de lhes agradecer por teimarem em seguir em frente, a ultrapassar as dificuldades, sem nunca virarem a cara á luta.

Mas, no entanto, nunca poderemos esquecer aquelas e aqueles que depois de cada crise a souberam reerguer. Não poderemos esquecer todos os que a trouxeram até aqui, desde sócios, músicos e dirigentes, de modo a que as novas gerações possam agora usufruir dela.

No dia 1 de janeiro estiveram os sócios de parabéns e, mais do que os sócios, estão a Graciosa e os Graciosenses de parabéns, porque podem contar com uma Filarmónica Recreio dos Artistas centenária e pronta para o futuro.