28 de dezembro de 2012

Contador de histórias



Gabriel Correia Pacheco de Melo

(07/01/1923)

A biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian corria as freguesias carregada de livros, proporcionando aos Graciosenses o acesso à leitura. Para uma grande parte da população esta era a única hipótese de contatar com os livros.

A carrinha, de marca Citroen, tinha um aspeto esquisito. Era forrada com uma espécie de chapa frisada, uma frente proeminente, com formas bem marcadas, mesmo tipo caixote, e com o tejadilho de abrir. Podia parecer invulgar mas era funcional. O seu interior guardava cerca de dois mil livros, meticulosamente arrumados, ficando os infantis nas prateleiras de baixo, os livros de ficção, biografias e de viagens ficavam ao meio e nas prateleiras superiores eram colocados os livros menos requisitados.

Terão sido milhares os livros emprestados nesta ilha por este serviço criado pela Fundação Calouste Gulbenkian que, deste modo, se substituída ao estado numa das suas funções mais básicas. No país foram emprestados por esta instituição cerca de 95 milhões de livros, segundo uma notícia da Lusa/RTP.

A gestão da viatura e do armazém, que deveria ter o triplo da capacidade da biblioteca itinerante, era feita por um auxiliar e também por um encarregado, cuja função mais relevante era a de orientar as escolhas dos leitores. Não se exigia ao encarregado qualquer formação específica, apenas um boa cultura geral, o gosto pela leitura e uma boa capacidade para lidar com o público.

O senhor Gabriel Melo tinha todas essas competências. Durante os vinte e dois anos em que exerceu esta atividade recebia como ninguém os seus “clientes” e incutia-lhes o gosto pela leitura, não só lúdica mas também formativa e informativa.

Foi nesta sua função que tive o primeiro contato com o senhor Gabriel Melo. Ainda me lembro o modo afável com que recebia as crianças e jovens da minha idade e lhes emitia os cartões onde eram registados os empréstimos dos livros. Aliás este seu modo terno e sempre bem-disposto com que tratava as pessoas ainda o acompanha hoje em dia. Era também ele que distribuía gratuitamente os livros de estudo pelos estudantes com mais dificuldades.

O senhor Gabriel fez o liceu no Brasil e é nesse país que inicia o seu percurso laboral. Foi funcionário no Gabinete Português durante alguns meses e depois transita para o Consulado de Portugal em Salvador da Baía onde trabalhou durante dois anos.

Em 1946, quando resolve voltar à sua terra, esteve no Brasil à espera de transporte até Lisboa durante três longos meses. Chegado à capital portuguesa esperou ainda mais dois meses para apanhar navio para os Açores. Eram os resquícios da II Grande Guerra Mundial a ditar as regras numa altura em que faltava tudo. Casa quatro anos depois de cá chegar e desse casamento resultaram três filhos.

Já na sua terra natal desenvolve uma intensa atividade social, sendo um dos fundadores do Clube Central e Recreativo de Guadalupe, de onde nasceram, por sua vez, o Sporting Clube de Guadalupe e a Filarmónica União Progresso de Guadalupe, dos quais também fez parte dos seus corpos sociais.

O surgimento do clube teve uma pequena história. O senhor Gabriel e um amigo, depois de autorizados a utilizar a casa de sua mãe para bailar, preparavam-se para proceder às respetivas limpezas na manhã seguinte. Durante a noite o senhor Gabriel pensou que seria do agrado da população a freguesia poder dispor de um clube definitivo e identifica a atual sede como um dos melhores sítios para a instalar, mesmo estando sem soalho e um pouco degradada. Nessa manhã e antes de procederem às limpezas na casa de sua mãe, conforme estava combinado, seguem até casa do procurador e fecham o negócio por 40 contos. E foi com este impulso que o Clube Central e Recreativo de Guadalupe é fundado a 31 de julho de 1955.

O Sporting Clube de Guadalupe também surge pela vontade deste homem que achava que um clube desportivo na sua freguesia traria algum movimento, apesar de ter sido dissuadido por amigos que o assustaram com os problemas que uma estrutura deste género poderia trazer. Não se atemorizou e procura o terreno para construir um campo de futebol para o clube que ajuda a inaugurar em 22 de abril de 1962.

No ano seguinte, mais precisamente no dia 29 de setembro, juntamente com os Guadalupenses que achavam que a freguesia mais rica e mais populosa da ilha necessitava de uma filarmónica que lhe desse prestígio, ajudou a fundar a Filarmónica União Progresso de Guadalupe.   

Foi o primeiro ganadero da Graciosa e, por essa via, foi o percursor das touradas nesta ilha. Com apenas dois toiros promoveu o gosto pela festa brava, que hoje ainda persiste e se encontra enraizado como uma tradição do nosso povo. Também se dedicou á exportação de gado vivo para o continente português durante cerca de 20 anos, atividade que, como se sabe, dinamizava a economia da ilha.

Em 1980 é eleito Presidente da Junta de Freguesia de Guadalupe, cargo que exerce até 1983.

Tem um gosto especial por viagens. Para além de conhecer muito o nosso país, conhece também o Brasil, onde viveu alguns anos, a Espanha, a Itália, o Reino Unido, a França e os Estados Unidos.

Tem um jeito muito especial para contar histórias de todo o tipo, mas distingue-se nas histórias verídicas. Nestes tempos de correria, em que não se pára para pensar e em que as preocupações com questões materiais se sobrepõem às coisas simples da vida, é um prazer ouvir histórias verídicas da nossa e de outras gerações e o senhor Gabriel fá-lo como ninguém. Conta-as umas atrás das outras.

No dia 7 de janeiro de 2013 o senhor Gabriel comemorará o seu nonagésimo aniversário, mantendo uma invejável boa disposição e um espírito jovem, que sempre o tem acompanhado ao longo da sua vida.

27 de dezembro de 2012

O Pai Natal


Neste período do ano lembro sempre, com uma certa nostalgia, os tempos em que acreditava no Pai Natal. Naquele tempo os diversos comerciantes, com a criatividade que os caraterizavam, tinham um Pai Natal que distribuía pelas casas dos seus clientes a prendas previamente adquiridas nos seus estabelecimentos.

A espera fazia-se em “pulgas”, com o pijama já envergado e com o rosto colado à janela da frente. Era um momento mágico, aquele em que o homenzinho de barbas brancas satisfazia uma parte, muito pequena diga-se, dos desejos da criançada.

Passada a idade da inocência e em que deixamos de acreditar em tudo o que nos dizem, mantenho o hábito de, nesta época natalícia e de transição para um novo ano, pedir a concretização de alguns desejos, muitos deles repetentes.

Queria que acabasse a fome e a guerra no mundo. Queria que o dinheiro gasto em armamento fosse todinho para a cura de doenças que ceifam vidas. Pretendia que o ser humano fosse mais justo e mais fraterno. Desejava acabar com a malvadez e a hipocrisia, tão abundante nos tempos que correm. Acho que não é pedir muito…

Mas ao aproximar-me do ano 2013 e pelo que os portugueses sofreram neste ano que agora termina, tenho mais uns desejos.

Queria que o Passos Coelho deixasse os pensionistas em paz e acabasse com as ameaças veladas de mais cortes nas suas pensões. Queria que o Presidente Cavaco Silva tivesse um sobressalto, nem que fosse cívico. Gostaria que os enfermos continuassem a ser tratados das suas maleitas e a ter acesso aos remédios de que precisam. Desejava que aos idosos continuassem a ser dispensados acompanhamento e carinho na última etapa das suas vidas. Queria que o governo não vendesse a RTP, que não deixasse morrer as universidades e que devolvesse os submarinos aos alemães.

Daqui a um ano cá estarei, se tiver vida e saúde, para renovar a esperança e os desejos que não forem concretizados. Bom Ano.

20 de dezembro de 2012

Diferenças


Estando sob a intervenção internacional para financiar o país, ficamos, indiscutivelmente, numa condição de estado com a soberania hipotecada, já se sabia.

Sempre que se pensa em algo de mais construtivo, como foi o caso recente da pretensão de aumentar o salário mínimo nacional, logo o governo de Passos Coelho se apressou a dizer que tem de pedir autorização à troika, que, por sua vez, depois de analisar o problema dá o seu veredicto.

Mas o país vai assim. Assiste-se ao falhanço de todas as metas negociadas no memorando de assistência financeira, apesar da enorme e desproporcionada carga fiscal a que estamos todos sujeitos, mas, mesmo assim, o ministro das finanças vem dizer que não, que acertamos em quase todas e as que falhamos foi, mesmo assim, por muito pouco.

Mas para esta confusão toda contribuem os membros deste governo e todos os líderes europeus bem como as organizações internacionais que não se cansam de dizer isto e aquilo e depois o seu contrário.

Merkel veio dizer que vamos no bom caminho. Depois vem a diretora do FMI dizer que é preciso prudência. Mais tarde a OCDE diz que não vamos conseguir. O Presidente do BCE vem dizer que o pior já passou. Depois vem Paulo Portas afirmar que já passamos o meio da ponte. Mais tarde ouvimos Merkel dizer que, afinal, está descontente com a prestação dos países periféricos, como Portugal. Enquanto isto Passos Coelho tem a certeza que este é o caminho certo, mesmo assistindo ao desmantelamento de empresas e destruição de emprego a cada dia que passa.

Não haja dúvida que a chanceler da Alemanha concorda com a gigantesca carga fiscal que os países em dificuldades impõem aos seus cidadãos. Essa tem sido, de facto, a sua receita.

A senhora Merkel tem confirmado que esta é a via para a recuperação e não se cansa de propalar essa ideia em todas as aparições públicas que faz fora do seu país, mas quando fala para os seus concidadãos, para os seus eleitores, a sua opinião muda completamente. Lá, no seu país, Merkel descarta qualquer aumento da carga fiscal para a classe média, que considera o motor do desenvolvimento. O que se percebe é que na Alemanha a senhora Merkel quer uma classe média e média alta pujante para estimular o consumo e assim proporcionar o crescimento. Para os outros a receita é precisamente o contrário: o empobrecimento da classe média que, por sua vez, diminui o consumo, contribuindo, assim, para a destruição de mais empregos.

Estas diferenças de entendimento, estas interpretações dúbias não faziam parte do pensamento dos construtores da Europa, com toda a certeza.

14 de dezembro de 2012

Alegre e conversador


Manuel da Ajuda Pereira Lima

(08/11/1943 – 01/03/2007)

O isolamento das nossas ilhas sempre foi combatido com fortes tradições muito enraizadas no nosso povo. Na Graciosa a música sempre ocupou um lugar de destaque no panorama cultural.

Antigamente existiam alguns divertimentos, como os diversos jogos de cartas e dominó, mas pelos bailes os Graciosenses deixavam tudo. Novos e velhos, todos gostavam de bailar e de cantar. Era desta maneira salutar que o nosso povo se divertia e confraternizava.

Nos bailes de carnaval, na matança do porco ou integrando grupos folclóricos, habituamo-nos a vê-los de viola a tiracolo, dedilhando e cantando músicas do reportório popular. Eram homens e mulheres, quase sempre bons foliões, que ocupavam os tempos que restavam da dura labuta do dia-a-dia divertindo os outros e fazendo o que mais gostavam: tocar.

O Manuel da Ajuda era um deles. Tocava muito bem a viola da terra. É impressionante ver tocar este instrumento. Com 12 de cordas (existe também uma versão com 15 cordas), a viola da terra emite uma sonoridade peculiar que se conjuga harmoniosamente com outros instrumentos musicais.

A aprendizagem da viola da terra era feita de um modo empírico, vendo os outros ou experimentando uma e outra vez, com muita persistência e dedicação. O Manuel da Ajuda também se fez executante assim, depois do senhor Manuel do Júlio lhe ter transmitido o gosto por este instrumento e lhe ter dado os primeiros ensinamentos.

A viola da terra é tipicamente Açoriana. Embora muito semelhante ao violão, é mais pequena e tem dois corações na boca, com as pontas opostas, que, dizem os entendidos, representam o amor entre duas pessoas que estão separadas fisicamente.

Desde o início que o Manuel da Ajuda tocou nas danças do senhor Francisco Sampaio. Foi membro do Grupo Folclórico da Casa do Povo da Praia. Tocava também em grupos de Reis pelos caminhos da Graciosa, visitando, nas frias noites de inverno, as casas em festa, espalhando alegria e boa disposição a quem os recebia. Era também muito solicitado para animar os bailes de carnaval com as modas de viola.

Em 1988 participou num concerto com 24 violas da terra, na freguesia de Guadalupe, dirigido pelo incontornável Padre Simões Borges.

Era agricultor de profissão. Vivia do rendimento que lhe dava o gado bovino que pastoreava nas suas terras.

Gostava muito de pescar. Dizem os mais próximos que o Manuel da Ajuda tinha errado na profissão, pois gostava tanto do mar que deveria ter sido pescador. Aos familiares e amigos terá dito que quando chegasse a idade da reforma iria dedicar-se à pesca. Infelizmente não chegou a gozar esse privilégio porque a morte, com os seus ditames, roubou-lhe esse sonho.

Era muito alegre e divertido e um bom conversador. Com os seus colegas da música, o Manuel Zagaia e o José Helder, entre outros participava em tertúlias que eram momentos de pura diversão, como acontecia frequentemente na tasca do senhor Álvaro.

13 de dezembro de 2012

Mais um jornal que morreu


O jornal “A União” desapareceu como diário, talvez na qualidade de mais uma vítima desta conjuntura económica desfavorável que atravessamos. Depois de 120 anos a escrever a história e histórias dos Açores, atravessando momentos altos e outros baixos, certamente, encerra assim, sem mais nem menos, um dos ícones da comunicação social da nossa região.

Nesta quadra de Natal, sempre propícia a encontros com familiares e amigos e em que as conversas são, quase sempre, alinhadas por lembranças alegres da nossa infância, recordo este diário vespertino que sempre cobriu a velha secretária lá de casa.

O carteiro deixava na nossa residência um molhe com uma ou duas semanas de edições do jornal, normalmente atadas com um barbante cor de canela. Chegavam-nos desatualizados, mas valia a pena. Abria-nos a janela do mundo.

Foi este jornal que acolheu um suplemento sobre a Graciosa. Foi neste jornal que me habituei a ver e a ler artigos de meu pai ou títulos de secções, ou do próprio jornal, desenhados pelo seu punho. Foi também neste jornal que publiquei pela primeira vez, uma crónica desportiva, no caso, que esperei ansiosamente apenas para a reler e apreciar, embevecido, o meu nome escrito no seu rodapé.

O seu desaparecimento é uma notícia triste para todos nós e ainda para mais recebida nesta altura que devia ser de alegria e de confraternização, altura, também, em que há mais harmonia e em que pensamos mais nos outros.

É triste porque ficamos todos mais pobres. É muito mais triste, ainda, para aqueles que perderam o seu ganha-pão, apesar de terem dado tudo de si para que esta situação nunca acontecesse.

Assim morreu mais um jornal. A nossa democracia ficou muito mais pobre.

6 de dezembro de 2012

Uma receita que não serve


A receita que o Governo da Republica nos quer impor para a resolução desta crise não está a resultar, já sabemos. O valor da redução das despesas neste momento só serve para pagar juros a taxas altas que nos são impostas pelas instâncias internacionais que nos emprestam o dinheiro.

Não há dúvidas que, hoje, os portugueses estão muito mais pobres, com milhões a viver no limiar da pobreza e com o aparecimento, todos os dias, de novos pobres. O défice teima em não diminuir, apesar de sermos massacrados todos os dias como mais impostos, mais cortes e com o anúncio de mais despedimentos. Ainda assim e apesar de todo este sufoco a nossa dívida continua a aumentar, sem data anunciada para estancar.

Fico ainda mais preocupado, quase sem reação, quando oiço, nas visitas que os nossos governantes fazem a Bruxelas ou a Berlim, os líderes europeus a tecerem elogios a esta via, chegando mesmo a referir que vamos no bom caminho. Os portugueses acham que este governo nos está a levar, não por um caminho, mas antes por um beco sem saída, ao contrário desses branqueadores do sofrimento dos outros.

Dizem os entendidos que bastava, por exemplo, pagarmos a mesma taxa de juro que a Alemanha paga para gerir a sua dívida pública, para resolvermos esta situação aflitiva com que nos encontramos.

É claro que esta solução nunca interessará aos poderosos e percebemos bem porquê. Esses países continuarão, assim como está, a usufruir de taxas vantajosas para gerir as suas dívidas, algumas semelhantes à nossa, enquanto nós temos de nos “virar” para cumprir as nossas responsabilidades.

Será este, então, o bom caminho que nos indicam? Não creio.