22 de fevereiro de 2013

Engraxador bem-falante

 
Renato da Cunha Bettencourt Neves

(08/11/1936 – 10/10/1988)

Via o Renato todos os dias, saltitando entre o quiosque da Praça Fontes Pereira de Melo e os baixos da casa do senhor Belchior. Era nesse dois sítios que estava quase sempre.

O único ofício que lhe conheci foi o de engraxador. Com um banco e a sua caixa, que servia para arrumar os utensílios da profissão e de base para colocar o pé com o calçado à espera de atenção, procurava os clientes, sobretudo aos domingos, na Praça Fontes Pereira de Melo, para lhes dar brilho nos sapatos. Enquanto limpava, dava graxa e polia, o Renato conversava com os seus clientes, que eram todos seus conhecidos, sobretudo sobre futebol.

No entanto o Renato, enquanto rapaz, serviu em várias casas de Santa Cruz. Cuidava dos quintais, tratava dos animais e fazia as “voltas” necessárias àquelas famílias. Nesse tempo ficou conhecido por “guarda-joias”, talvez devido a alguma inconfidência logo aproveitada pelos especialistas em atribuir alcunhas.

Era um homem magro e de baixa estatura, podendo mesmo classificar-se com franzino. Andava bem penteado, muito à conta da brilhantina que lhe alisava o cabelo. No canto da boca via-se quase sempre um cigarro que também lhe amarelava os dedos.

Com o advento da democracia em 1974, os partidos de então, e eram muitos, faziam incursões por estas ilhas debitando as suas ideias em inúmeras sessões de esclarecimentos. O Renato, impulsionado por aquilo que era uma autêntica novidade para todos os graciosenses, levou isso a peito de tal maneira que, quando bebia uns “copitos” a mais, era vê-lo por cima do quiosque da praça em animado “comício” para deleite dos transeuntes, sobretudo os notívagos, que faziam da praça a sua sala de estar.    

Empenhava-se muito naquelas suas intervenções, mas não ofendia ninguém. Quando queria reforçar uma ideia ou mesmo repeti-la usava sempre a expressão “ou que seja”, o que levou algumas pessoas a tratá-lo assim, pois, como se sabe e já aqui foi referido, as alcunhas na Graciosa, por vezes, surgem do nada.

Era adepto do Graciosa Futebol Clube, onde chegou a jogar. Certo dia, o treinador mandou-o, na segunda parte, saltar do banco para jogar a ponta de lança. O defesa Reinaldo Tristão, pai e avô de dois guarda-redes do mesmo clube, colocou-lhe a bola no meio campo e o Renato, com o seu passo miudeiro, isolou-se e correu em direção à baliza à guarda do Antero. Quando se viu só à frente da guarda-redes do Santa Cruz Sport Clube desferiu um remate e o Antero, fazendo o que lhe competia, atirou-se para o lado esquerdo e defendeu … a bota de travessas do Renato, enquanto a bola seguiu, menos veloz mas mais certeira, em direção à baliza, fazendo assim um golo de antologia, que o seu autor nunca mais esqueceu, nem nunca deixou de contar sempre que se falava de futebol.

O Renato, ainda novo, teve necessidade de receber tratamento na vizinha Ilha Terceira. Foi aí que acabou por encontrar-se com a morte de uma forma trágica e inesperada.

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